Resenha crítica do texto “Notas sobre identidade de gênero e sexuação”
- Lucas Fraga Gomes
- 26 de fev. de 2018
- 4 min de leitura
A respeito da temática do gênero e sua possível conexão com a psicanálise, coloco o texto de Macêdo como o mais interessante e que permite pensar tal temática de uma forma mais ampla, não se restringindo as fórmulas da sexuação.
A autora inicia seu texto afirmando - e tendo como base - a diferença irredutível entre identidade de gênero e anatomia. Afirma:
A clínica demonstra que as tentativas de se forjar uma “adequação” entre anatomia e identidade de gênero não resolve os embaraços e enigmas dos sujeitos com a coisa sexual. Justamente porque a anatomia não é o destino, e também porque as palavras não dão conta de nomear a “coisa sexual”, o gozo virá inevitavelmente perturbar as relações das palavras com os corpos. Há algo dessa relação que resta inominável e sem lei. É essa opacidade que a psicanálise se propõe a acolher, dando-lhe voz e construindo-lhe um lugar possível (MACÊDO, 2016, p.2).
Ou seja, dentro desta perspectiva qualquer intervenção médica esbarra na impossibilidade de se oferecer uma certeza de adequação, pois, é justamente pela ausência da relação sexual que um sujeito, trans ou não, terá que se deparar com esta constatação, que é o: “[...] impossível do encontro com o outro gozo em sua alteridade radical [...]” (MACÊDO, 2016, p.2).
A autora postula, com muita sabedoria, que a psicanálise pensa um sujeito afetado pelo real pulsional e pela repetição, tal como a obra freudiana atesta (MACÊDO, 2016). Pois, é justamente este real, que sendo opaco, torna-se impossível de ser desconstruído ou mesmo reduzido a relações de poder. Dentro desta perspectiva, não é forçoso afirmar que a diferença sexual é antes de tudo, uma inscrição no registro do real.
Seguindo a linha de outros trabalhos de psicanalistas, a autora também rechaça as críticas de que a psicanálise, em especial a teoria lacaniana, funda-se na heteronormatividade e do binarismo (MACÊDO, 2016). Segundo a autora tal abordagem é equívoca, pois esquece os principais pontos da psicanálise, ou seja: “[...] arranjos singulares que cada um inventa para si a fim de dar conta dos impasses vividos no campo sexual e no curso da existência”. (MACÊDO, 2016, p.5)
Ainda a este respeito à autora afirma que a psicanálise não é um discurso que visa à busca uma normatividade, antes ela:
[...] é sensível, sim, à força de um desejo inédito e às consequências de se agir em conformidade com esse desejo. Neste estado de coisas, se o corpo funciona sozinho, se não há ser no corpo, existe o acontecimento. Acontecimentos de corpo e suas marcas de gozo [...] (MÂCEDO, 2016, p.6).
Penso que aqui se encontra a grande novidade proposta pela autora: pensar a temática do gênero, ou pela linguagem psicanalítica: sexuação, pelo viés do acontecimento de corpo. Sabe-se que a noção de acontecimento é muito importante para a filosofia francesa, tendo como marco o lançamento do livro “A lógica do sentido” de Gilles Deleuze. Lacan fará uso da noção de acontecimento já na década de 70, em especial em seu Seminário 23: Sinthoma.
Ou seja, o uso de Lacan da teoria do acontecimento é posterior a seu trabalho com as fórmulas da sexuação. Desta forma, a meu ver, a proposta da autora permite outra chave de leitura:
[...] Minha hipótese é que tais marcas de gozo comportem um ponto de foraclusão para todo e qualquer sujeito, vindo a funcionar tal qual um paralelo a atravessar a verticalidade da clínica estrutural, aproximando entre si, neste exato ponto, as clássicas estruturas clínicas, antes absolutamente separadas pelo bastião do Nome-do-Pai. (MÂCEDO, 2006, p.06)
Ou seja, abre-se a perspectiva para se pensar a questão da sexuação (ou do gênero), a partir do gozo, aquilo que não pode ser desconstruído e que perturba as identidades. Fazendo uso das fórmulas da sexuação, Macêdo (2016) aventa a possibilidade de se pensar tal temática no polo feminino, ou seja, o do não-todo:
[...] A lógica da sexuação rompe o sentido de categorias por demais genéricas, tais como, heterossexual, homossexual, bissexual, transexual, encontrando suas raízes na lógica do não-todo e do um por um. Neste campo, não há relação fixa nem direta entre identidade de gênero, anatomia e modalidade de gozo. (MÂCEDO, 2016, p.06)
Desta forma, cabe a cada sujeito inventar uma resposta sobre o inominável do sexo:
[...] Neste campo, cada qual é responsável por sua bricolagem, mais além do sexo de atribuição, do sexo biológico, das certezas e das incertezas, preservando um lugar para o inesperado, para o não sabido de antemão. (MÂCEDO, 2016, p.07)
A autora aponta com muita perspicácia que as noções que Lacan apresenta, especialmente em seu último ensino, de sexuação, sinthoma e invenção são justamente as ferramentas que permitem pensar a maneira que cada sujeito arranja para lidar com este real inominável. Desta forma Macêdo aposta na clínica como o lugar que é:
[...] o espaço, por princípio, da singularidade e da contingência. Na sessão analítica, assim como nas artes e seus múltiplos dispositivos, é possível dar lugar às contingência como princípio radical de orientação do qual não podemos abrir mão. É, por isso, um lugar no qual se aloja o indecidível, ou seja, aquilo que constitui o lugar vazio que opera no centro de toda e qualquer decisão e aquilo que nenhum protocolo jamais poderá garantir ou prever. (MACÊDO, 2016, p.13).
Referência Bibliográfica
Macêdo. L. F. Notas sobre identidade de gênero e sexuação. Opção Lacaniana online nova série. Ano 7. Número 19. Março 2016. Disponível em: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_19/Notas_sobre_identidade_de_genero_e_sexuacao.pdf. Acesso em: 14 de abr. de 2017.
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